Não é fácil a tarefa de apresentar Um Manifesto Hacker, de McKenzie Wark, ao público brasileiro. A natureza ensaística, provocativa e irônica da obra nos põe um desafio: como falar de um presente sem estragar a surpresa? Outra questão é o tempo: o livro foi lançado pela primeira vez há vinte anos. Como contextualizar a obra? O papel da informação e das tecnologias na sociedade contemporânea está ainda mais visível do que há vinte anos, o que faz com que a obra continue atual – como a própria autora afirma em sua introdução à edição brasileira. Se, por um lado, não vamos estragar as surpresas – elas são deliciosas – por outro, não espere uma apresentação tradicional. Ela seria o exato oposto do que o próprio livro tentou ser.
O que podemos contextualizar é que, embora a tradução apenas saia agora, sua recepção em território brasileiro aconteceu mesmo há quase vinte anos. De forma um tanto errática, quase underground, o livro foi lido e discutido em meios acadêmicos e ativistas, sobretudo onde havia pessoas interessadas em torno da grande área que se convencionou chamar cibercultura – nome que hoje, com a onipresença do digital em nossas vidas, parece ter sido abandonado.
Dentro dessa área, hackers afeitos também aos estudos filosóficos de inspiração deleuziana sobre a técnica receberam com entusiasmo estes escritos de McKenzie Wark; outros, especialmente teóricos da comunicação e da sociologia, leram com atenção as teses do livro e notaram as semelhanças com “A Sociedade do Espetáculo”, de Guy Debord, e “Manifesto Comunista”, de Karl Marx e Friedrich Engels, evidentes na forma aforística do texto mas nem tão clara no conteúdo – embora você verá muito de ambos autores nas páginas do livro.
Outros, como um dos autores desse prefácio, inclusive chegaram a começar uma tradução de Um Manifesto Hacker, principalmente porque queriam que as ideias da autora se espraiassem para além do meio teórico onde elas circularam com mais ênfase. A tentativa de tradução, fadada desde o início a ser frustrada, rendeu algumas boas conversas em madrugadas afora dentro de ônibus hackers pelo Brasil e se perdeu inacabada em algum link de pad dos anos 2000. A que temos aqui é uma muito mais robusta e madura, à altura do desafio que é transpor um texto que se propõe críptico, além de provocador e inovador.
Muita coisa ocorreu na internet e no mundo das tecnologia digitais nestes vinte anos que separam a primeira publicação do livro e esta edição brasileira, a começar pelo talvez principal tema discutido em Um Manifesto Hacker: a noção de propriedade intelectual e suas implicações filosóficas e éticas. 2003 é o ano da expansão mundial do Creative Commons, criada dois anos antes como a principal organização surgida na esteira do debate em torno do acesso ao conhecimento livre X defesa da propriedade intelectual na rede – um tema que, durante esta década, foi tão importante quanto é o da desinformação nos anos 2020. No Brasil, 2003 é o primeiro ano do primeiro mandato como Presidente de Lula, que pôs como seu Ministro da Cultura Gilberto Gil. Músico inventivo e tropicalista que sempre foi, Gil compreendeu na hora o que significava à época a cultura do recombinação presente na liberação da informação na rede, e por isso foi um dos maiores incentivadores da cultura livre no país a partir da propulsão de seu governo, tanto das licenças livres do Creative Commons no país quanto do software livre, a base técnica – e também filosófica – por trás da cultura livre.
A lembrança de 2003 é inevitavelmente saudosa. Vivíamos um tempo onde a crença no potencial transformador da internet e das tecnologias digitais era o zeitgeist, à direita, centro e à esquerda do espectro político. Achávamos que o livre acesso à informação nos faria aprendermos muito mais sobre tudo; que o acesso grátis, à margem da lei, à todos os bens culturais que nossa conexão permitisse nos faria conhecer muito mais a cultura e a arte de todos os lugares; que a liberação do pólo emissor da informação para qualquer pessoa com acesso à internet era o caminho da libertação das narrativas enviesadas da chamada grande mídia. Como McKenzie Wark, lutávamos para libertar a informação das correntes que a prendiam na época – numa das frases mais inspiradas e citadas do livro.
A vivência dos últimos anos, porém, faz o parágrafo anterior soar como escrito por uma criança ingênua. Talvez devêssemos saber que o abuso precede o uso, ou que o capitalismo neoliberal forjado à sol e anfetamina do Vale do Silício é muito mais perverso que nossas pretensões igualitárias de justiça social mediada pelas tecnologias. Talvez. Mas o fato é que o pesadelo da desinformação levantado pela abertura da caixa de pandora da informação livre nos faz ver, com mais clareza de que gostaríamos, que os discursos de ódio e os extremismos diversos em 2023 predominam na sociedade – e são amplificados pelas plataformas digitais, estes sistemas técnicos que, praticamente inexistentes em 2003, hoje são a internet para a maior parte das pessoas conectadas em rede.
Se isso muda (quase) tudo o que pensávamos antes, mudaria também Um Manifesto Hacker? Certamente. Como diz a própria autora no texto à edição brasileira, “as proposições táticas de Um Manifesto Hacker são de seu tempo”. Ela mesma continua afirmando que, apesar disso, acha o livro infinitamente produtivo, tanto por conceitos ali trabalhados (como a natureza como diferença, a contraposição da expressão à representação, entre outros) como pela prática de uma teoria social filosófica mais afeita aos experimentalismos textuais, como se pudesse ser lida também como Literatura (ou fruída como arte), no movimento que ela posteriormente chamaria de baixa teoria (low theory).
Mas afinal, como seguir apresentando as ideias do livro sem estragar as vigorosas surpresas de sua escrita? Sendo um de seus primeiros livros publicados, o manifesto dá um primeiro vislumbre daquilo que viria a ser desenvolvido em obras posteriores como “General Intellect” (2017) e “The Capital is Dead: is this something Worse? (2019, publicado no brasil como “O Capital Está Morto” em 2022)”. Nascia ali uma visão bastante original e provocativa de se pensar as reconfigurações dos regimes de produção, num momento em que as tecnologias digitais se tornam infraestrutura fundamental – e a informação, a principal mercadoria.
Um Manifesto propõe a visão de que existem três classes dominantes e suas respectivas classes dominadas. Cada uma dessas classes dominantes deriva seu poder da propriedade privada de uma categoria de meios de produção. São elas a classe pastoralista, que detém terras; a classe capitalista, que possui capital; e a classe vetorialista, proprietária da informação. E suas decorrentes classes dominadas, respectivamente a classe camponesa, a classe trabalhadora e a classe hacker. Apesar de haver uma sequência histórica na emergência de cada uma delas (primeiro veio a pastoralista, depois a capitalista, e agora a vetorialista), a autora afirma que as três classes coexistem no presente.
Filosofar é, no sentido deleuziano, criar conceitos. E é exatamente isso que Wark faz – introduzir uma série de novos termos em nosso vocabulário e conferir um sentido estranho àquelas palavras mais banais. Sua originalidade é, sobretudo, de uma inovação na linguagem. Assim, a autora introduz ao menos duas ideias radicais que provocam a ortodoxia marxiana. A primeira é falar em classes, no plural. No mundo vetorialista, a história da humanidade não é a história da luta dicotômica entre duas classes, mas de alianças e conflitos entre seis classes dominantes e dominadas.
E a segunda é proposição de uma nova classe, a classe vetorialista. Hoje em dia, soa no mínimo estranho falar que não vivemos mais no capitalismo. Parece não haver dissenso de que isto é capitalismo, restringindo as controvérsias entre direita e esquerda se isso é bom ou ruim. É preciso muita coragem para defender uma tese tão estranha àquilo que se tornou premissa do pensamento econômico de todos os lados. Dizer que o capitalismo foi ultrapassado é quase tão radical quanto afirmar que Deus está morto ou que a Terra não é o centro do universo. Se no manifesto sua leitura era mais descritiva, em suas últimas publicações assume-se o tom taxativo – não apenas não estamos mais no capitalismo, estamos no vetorialismo e isso é pior.
Os vetorialistas nascem como classe no momento em que transformam em mercadoria aquilo que em grande parte da história humana foi tratado como um bem comum – a informação. Por muito tempo, a informação foi tratada como o ar ou a água, algo que pertence a todos e não a um particular. Contudo, as classes dominantes logo perceberam a oportunidade de explorá-la. A posse da informação também possui uma característica que a diferencia da posse de terras ou fábricas – as segundas, por serem materiais, são aquilo que se chama de bens concorrentes. Sua propriedade funciona por exclusão – se eu tenho, você não pode ter. A informação, por outro lado, é essencialmente imaterial, abundante e não-concorrente – se eu “tenho” uma ideia, não existe uma ideia a menos na natureza. Você e eu podemos ter a mesma ideia, sem nos excluirmos.
Portanto, a classe vetorialista usa dos mecanismos de propriedade intelectual para exercer poder sobre a informação. E controla seus fluxos, os quais McKenzie Wark chama de vetores – a capacidade de transmitir, armazenar e transformar a informação. Por esse poder, possui uma vantagem sobre as classes que a antecederam (pastoralista e capitalista), já que ainda estavam muito limitadas geograficamente. A terra não pode ser movida no espaço; o capital pode se locomover mas ainda encontra muitas barreiras; mas a informação pode circular livremente, quebrando todas as barreiras temporais e geográficas.
Se toda classe dominante possui sua correspondente classe dominada, aquela derivada da classe vetorialista é a chamada classe hacker. À primeira vista soa estranha a introdução da figura do hacker no vocabulário da economia política. O hacker não é mais um sujeito criminoso capaz de se infiltrar em sistemas de informação, mas uma classe social? A autora ressignifica a imagem do hacker para representar a classe que produz a informação. A classe vetorialista precisa de trabalhadores que estejam constantemente produzindo a informação que irá possuir. Essa produção é feita pela classe hacker que, como toda classe dominada, é posteriormente separada daquilo que produz.
Os bons textos são aqueles com os quais nos deparamos e somos provocados por eles. Aquele que nos move e nos bota para a ação. Um Manifesto Hacker foi feito não para concordar com tudo, mas para sair do lugar comum. Isso já tinha sido mostrado na obra mais recente de Wark traduzida para o português, O Capital Está Morto. Obviamente, ela não argumenta isso ipsis literis. Não é esse o ponto. São provocações. Isso não desmerece a construção teórica de Wark, que é feita a partir de colagens e remixagens. E se o remix aparece solto ao longo do texto, o apêndice final dá um total pedagógico e didático ao Manifesto. Afinal, é um Manifesto, não um Tratado.
Um dos pontos sensíveis no livro é a relação com o marxismo. Talvez Marx seja o autor mais citado da obra. O diálogo está presente ali o tempo todo, especialmente em termos da forma-mercadoria para compreender o papel da informação no mundo contemporâneo. A própria noção de classe, reapropriada de uma maneira no mínimo criativa, inspira-se em Marx para ir além dele – e há inúmeras controvérsias se o vetorialismo é ou não útil para se pensar classe. O que está no subtexto é que não há apenas uma maneira de dialogar com Marx – “cuidado, vão tirar sua carteirinha do clube!”. Geralmente os que dialogam com Marx com perspectivas “fora do clube” são taxados de “pós-modernos”, essa categoria espantalho, quase memética, para todo mundo que foge da cartilha. Wark nos provoca a pensar com Marx e para além de Marx em um puro estilo remix.
Em suma, o diagnóstico do livro, embalado em acidez e ironia, é até mais crítico do que os contumazes marxistas ortodoxos. Vislumbra o papel da informação, dialeticamente, no atual modo de produção, tanto em termos de classes dominantes quanto de possibilidades de hacks. O que, por sua vez, se conecta ao cenário atual dos estudos críticos em internet – especialmente a partir de temas como plataformas, dados e inteligência artificial, considerando perspectivas como colonialismo, imperialismo, dependência, capitalismo, e como fazer para subverter essas lógicas. O convite para superar o atual estado das coisas é ainda uma possibilidade mesmo em um cenário mais desfavorável em relação a 2003 no âmbito das tecnologias digitais. O que significa reler Um Manifesto Hacker 20 anos depois? Talvez signifique revisitar aspectos tanto de “como chegamos até aqui” quanto de “como fazer as coisas de formas diferentes”. Relê-lo considerando as possibilidades e os constrangimentos do tempo atual. O convite está lançado!
Leonardo Foletto
Rafael Grohmann
Victor Barcellos
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