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O aborto criminalizado e tudo aquilo que nos corta, por Nathalia Diórgenes

Nathalia Diórgenes é feminista negra, militante da Marcha Mundial de Mulheres. Assistente social, mestra e doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. É professora adjunta do curso de Serviço Social da Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira - UNILAB, integra o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Poder, Cultura e Práticas Coletivas (UFPE). Dedicou seus esforços acadêmicos em torno do tema do aborto e suas interfaces de classe e raça, tendo defendido, em 2020, a tese de doutorado "Entre silêncios, interdições e pessoalidades: uma análise racial das histórias sobre aborto no sertão", fruto de um estudo etnográfico, tendo como argumento central que o aborto no sertão é uma prática social ambivalente, marcada por silenciamentos, humilhações e apoios, sendo ainda ordenada pelo racismo patriarcal.


São muitas. Ou melhor, somos muitas. Somos a jovem que não queria interromper

os estudos e, por não ter direito à própria capacidade reprodutiva, agonizou sozinha

em um quarto; somos a mãe trabalhadora que precisou fazer um aborto porque uma

outra gestação a faria perder o emprego; somos a mulher estuprada que teve seu

direito negado e recorreu à clandestinidade; somos aquela que gera um feto

incompatível com a vida, mas o Brasil só permite a interrupção nos casos de

anencefalia; somos a mulher que sofre violência psicológica, mas neste país apenas

estupro qualifica o aborto como permitido; somos a trabalhadora sobrecarregada

que esqueceu um dia de tomar a pílula anticoncepcional, pois trabalha 8 horas por

dia para receber uma salário mínimo, passa três horas no deslocamento e ao

chegar em casa cuida sozinha das crianças e do demais trabalhos reprodutivos;

somos a jovem que nunca teve acesso à educação sexual e, por isso, se deparou

com uma gravidez imprevista; somos a mulher abandonada pelo parceiro ou aquela

obrigada pelo parceiro a fazer o aborto; somos uma adolescente que recorreu ao

tráfico para conseguir realizar o procedimento; somos a mulher que acreditou que o

parceiro iria mudar, mas foi novamente preso; somos ainda aquela que não sabe o

que aconteceu, pois estava utilizando o método contraceptivo corretamente; somos

a mulher negra que ao recorrer ao serviço de saúde para acolhimento, apenas

encontrou racismo institucional.


Os contextos são radicalmente diferentes. Raça, classe, geração, território,

produzem uma miscelânea de situações. Incontáveis, eu diria. Entretanto, todas

essas mulheres têm em comum a criminalização, que pesa nos seus ombros e

expõe suas vidas, suas intimidades. São mulheres do Sul-Global, cujos corpos são

marcados pelos tentáculos da colonização. Afinal, não é coincidência que a maior

parte dos países que ainda criminalizam o aborto sejam ex-colônias. A violência

colonial a sangue, ferro e bíblia forjou os nossos corpos e destruiu nossos saberes.

Chamadas de bruxas, tivemos a nossa capacidade reprodutiva posta no colo da

medicina ocidental que nos ensinou como e quando parir, nos rasgou entre o

períneo e o ânus, subiram em cima do nosso ventre e quando reivindicamos ajuda

na dor, nos responderam: “Se foi bom na hora de fazer, vai ser bom na hora de ter,

aguente!


Mas essa história é também de resistência. O cotidiano nos mostra (junto a

diversos estudos) que a solidariedade das mulheres evoca diversos saberes

ancestrais. Como nos bem lembrou Karen Mar Mercado Andia, que neste mesmo

cenário de pesar para mulheres é terra onde semeamos as sementes da resistência

feminina. São as mulheres que cuidam da vida e da morte. Abortam, parem,

cuidam. Cuidam das crianças, cuidam dos animais, cuidam da terra e da vida.


Nas minhas andanças pelo sertão de Pernambuco foram as mulheres que

me ensinaram sobre trabalho, cuidado e política. Camila, uma das jovens que

conheci na pesquisa de doutorado, me contou os ensinamentos da mãe sobre os

chás no sítio em que viviam, antes dela migrar para a zona urbana com o objetivo

de estudar: “Minha mãe falava dentro de casa que semente de coentro e canela

funcionava para abortar e para a menstruação descer. Outros chás também. Então

eu já sabia como podia fazer porque minha mãe já tinha falado em casa”. Luciana,

por sua vez, me ensinou sobre o Pacumã. A sogra dela tentou abortar com Pacumã,

nome dado a “um bichinho que cria na fuligem da parede perto do fogão a lenha”. O

chá é abortivo quando usado junto à cabacinha. A sogra dela tentou fazer o aborto

porque já tinha 45 anos quando ficou grávida na zona rural, e teve vergonha de

engravidar já velha. “O que é besteira, hoje em dia as mulheres engravidam com 45

anos, mas na época de antigamente não”, me conta.


O fato é que as mulheres ao longo da história da humanidade, em diversos

territórios,utilizaram a diversidade biológica do mundo no manejo da sua

capacidade reprodutiva e sexual. Ou seja, saúde sexual e reprodutiva envolvia (e

ainda envolve) uma série de manejos de chás, de ervas, de raízes, de cascas,

conforme apresentado neste livro por Eliana Rodrigues.


Diversas comunidades tradicionais mantêm seus saberes ancestrais em

resistência à massificação dos saberes europeus ocidentais. Durante séculos as

mulheres abortaram sem que esta prática se tornasse pública para a sociedade. Era

uma forma de esconder relações extraconjugais, espaçar os nascimentos das

crianças, resistir à escravidão. As mulheres negras recorreram ao aborto para não

gerar filhos que seriam escravizados. Assim, o aborto se impõe para as mulheres

como uma forma de existência com pouco mais de dignidade e também resistência

a um sistema que tomou posse dos seus úteros, das suas vidas.


O aborto é e sempre foi um episódio na vida reprodutiva das mulheres. Depois de grávidas elas podem tanto parir como abortar. A conexão entre as mulheres, a tomada de consciência de seus corpos e o uso da flora para abortar e parir apresenta uma outra concepção de corpo: um corpo que é território, um território que é espírito, pois fala sobre escolhas responsáveis e éticas por parte das mulheres a respeito de suas próprias vidas.



Nos encontros com as histórias das mulheres sobre aborto aprendi que a

responsabilidade é um guia.“Não podia ter um filho naquela condição”, “não tinha

preparo psicológico para ser uma boa mãe”, “meu filho merecia outro pai”, “eu sei

que é pecado, mas Deus sabe pelo que eu tava passando” são frases comuns que

permeiam essas histórias. As mulheres fazem aborto porque são responsáveis,

porque sabem que não vão abandonar e que o momento do nascimento da sua

criança significa um compromisso para vida toda. O cuidado tem seu custo. E em

uma sociedade capitalista-racista-patriarcal esse custo para mulheres é alto.


De prática íntima e comum entre as mulheres, o aborto passa a ser criminalizado no Código Penal do Império em 1830. Em 1940, o Código Penal da República, em voga até os dias atuais, apresentou dois permissivos: gravidezes em caso de estupro e que gerem risco à vida da mulher podem ser interrompidas. Esses dois permissivos pairam no ar até hoje de certa forma. O primeiro serviço de aborto legal é criado apenas em 1989, mais de 40 anos depois e ainda apresenta diversos problemas de implementação que vão desde a falta de divulgação dos serviços até a recuso de profissionais de saúde no atendimento a meninas e mulheres. O permissivo que rege o risco de morte fica a cargo da interpretação da medicina tradicional. O que é uma gravidez que causa risco à mulher? Bom, é uma

pergunta cuja resposta depende de quem a formula. Muitas mulheres afirmam que o

seu contexto é tão adverso que, caso elas não consigam fazer um aborto, a única

saída será o suicídio. Ora, esse não é um risco de vida? Infelizmente, ainda há

muito caminho para trilharmos.


Além da criminalização, há outro momento significativo: o momento em que

se torna a gravidez pública. A ultrassonografia foi a tecnologia que possibilitou a

humanização do feto. Tal fato permitiu de uma só vez publicizar a gravidez e

ver/ouvir o embrião/feto, enclausurando as mulheres em culpa e em caminhos sem

alternativas. Aliadas à criminalização, as tecnologias biomédicas funcionam como

uma ferramenta de constrangimento moral para as mulheres que estão diante de

uma gravidez imprevista, expondo-as aos riscos, medos e sofrimentos da

clandestinidade.


Os dados apresentados por Ellen Vieira neste livro revelam o descompasso

entre o silêncio em torno do aborto e regularidade desta prática na vida das

mulheres. A despeito da criminalização, o aborto é uma prática social que aprofunda

os abismos raciais e sociais entre as mulheres. A história de Nega traduz tais

complexidades. Jovem, periférica, negra, envolvida com tráfico de drogas, quatro

gestações, dois abortos, um natimorto e uma filha. A terceira vez que engravidou

queria levar a gestação adiante, mas o parceiro não mostrou interesse. “Eu tava

feliz, mas eu queria que ele ficasse feliz, eu dizendo que ia tirar pra ele dizer ‘não,

não vai tirar não’. Mas ele não teve essa reação. Ele disse... quando foi depois de

dois dias, ele passou dois dias sem ir em casa. Eu ligando, ele não me atendia...”. A

relação de Nega e o parceiro era irregular e descontínua, na qual todo o percurso de

aborto foi feito por Nega de forma extremamente solitária e muito dolorosa. O

parceiro apenas arcou com os custos do medicamento, todas as implicações físicas

e psicológicas recaíram apenas sobre Nega. Mais ainda, no dia de interromper a

gestação, o parceiro sacou uma arma e disse: “quero ver se você vai tomar isso

mesmo”. Nega enfrentou e disse que iria fazer o aborto, pois se ele quisesse ter o

filho com ela não teria trazido o fármaco. Além de realizar o aborto com uma arma

apontada para si,Nega ainda sofreu toda a sorte de violência racial quando

procurou o serviço de saúde.


Aí fui pra maternidade, disse “olhe, mãe, o seu bebê tá vivo” (...) “olhe, mãe,

o seu bebê tá vivo, agora seu bebê vai ter um pobreminha, ele vai nascer

sem o bracinho”. (pausa) Aí eu fiquei... passada, né? Poxa por causa de

mim. Aí eu liguei pra ele e disse “olha, o bebê tá sem o braço”. Aí ele pegou

e comprou outro, de novo Cytotec pra eu tomar. “Já que tá sem o braço,

bora tirar logo tudo”. Aí eu tomei de novo Cytotec (Nega, 26 anos, classes

populares, negra, solteira, dois aborto, um natimorto, uma filha).


Nega precisou recorrer ao serviço de saúde três vezes, apenas na última vez

foi internada para realizar o esvaziamento do útero, um procedimento conhecido

popularmente como curetagem. Chamada de mãezinha em todos os atendimentos,

à Nega em nenhum momento foi dispensado um atendimento acolhedor, escuta e

cuidado. Ela foi apenas criminalizada. No Brasil, apenas o estupro qualifica a

permissão para interromper a gestação. As situações de violência física, moral, patrimonial ou psicológica não qualificam a gravidez como legal, sendo que a violência doméstica é uma realidade na vida das mulheres negras deste país.


A história de Alice também nos ensina sobre os atravessamos da violência

doméstica nos percursos abortivos das mulheres negras. Jovem, negra e periférica,

já tinha um filho com o parceiro quando se descobriu grávida novamente. Conversou com o parceiro e decidiu levar a gravidez adiante. Quando estava com mais de 12 semanas o parceiro foi pego roubando outra vez. Ele havia prometido que ia mudar, que sairia da “criminalidade” para que pudessem ter outro filho juntos. Enquanto ele estava na cadeia, Alice decidiu pelo aborto que também significa o rompimento com aquela relação: “Se ele fosse um homem direito, trabalhador, não fosse envolvido com droga, essas coisas, eu acho que eu teria tido”. Quando o parceiro descobriu o aborto ameaçou que mataria Alice e toda a família dela. Alice não relatou agressões físicas do parceiro, mas as ameaças eram constantes, chegando ao extremo dele ameaçar “matar todo mundo”. Alice foi categórica que não poderia mais ter mais um laço com aquela relação. Mas nada disso importa para criminalização. Ao procurar o serviço de saúde para realizar a curetagem, o

médico que a atendeu mostrou o feto e disse: “olha o que você fez com o seu filho”.

Violência psicológica e tortura são o resultado da criminalização do aborto na vida

das mulheres, em especial as mulheres negras.



Entre as mulheres rurais, o peso da criminalização é sentido no silêncio que

massacra.O silenciamento é um processo que impõe o silêncio sobre algum

assunto, interdita a fala, amedronta e impossibilita espaços de escuta. O medo, a

vergonha, as incertezas em relação a acolhida operam para que as mulheres

silenciem sobre as experiências do aborto. A sexualidade das mulheres rurais é

marcada por forte desigualdade de gênero, valorização exacerbada da maternidade,

limitações de acesso aos métodos contraceptivos. Além disso, a sexualidade está

intimamente relacionada à construção de famílias impregnadas de valores tradicionais. Ao decidir pelo aborto, as mulheres estão rompendo com valores de vida e de família compartilhados por aquela comunidade e pelas suas redes de interconhecimento. Calar traduz uma estratégia de sobrevivência em um contexto em que a liberdade de ir e vir das mulheres é controlada, o anonimato indisponível e sua reputação é atacada caso elas burlem as ordens morais de gênero partilhadas naquela comunidade. O silenciamento implica em uma rede de apoio fragilizada, que por sua vez põe em risco a integridade física das mulheres por não obterem métodos seguros para realizar o aborto, além do medo e da solidão e o sofrimento de fazer o processo escondido e com medo.


A história de Rafaela demonstra o impacto do silenciamento em relação ao aborto na vida das mulheres rurais. Jovem, com 26 anos, branca, casada, com dois filhos pequenos e moradora do sítio,Rafaela é liderança do movimento da juventude rural e se desdobra entre as tarefas da militância e o cuidado da casa e dos filhos. Quando descobriu que estava grávida só podia contar para uma pessoa, sua comadre. Havia engravidado na troca de anticoncepcional que utilizava corretamente.“Precisei trocar porque não me sentia bem como que estava tomando”. Demorou muito para conseguir acionar alguma rede de apoio. Recorreu a chás e ervas, mas não obteve sucesso. Ela e a sua comadre não sabiam onde

poderiam comprar o medicamento. Demoraram muito até Rafaela decidir pedir ajuda a companheiras de movimento. A essa altura estava com três meses de gestação,realizou o aborto com misoprostol, mas não contou para o marido. Precisou deixar os filhos na casa da amiga, pois seu marido não podia cuidar deles sozinho. Disse ao marido que tinha reunião na capital e viajou para realizar o aborto com uma pessoa que ela conheceu em uma atividade política apenas uma vez. Rafaela narra que se sentiu mal por esconder do marido e da família, mas não tinha condições de ter outro filho.


A solidariedade é o ponto que une essas histórias. Apesar de muitas vezes

sozinhas,são outras mulheres que se aproximam para cuidar.Mesmo tendo

passado a maior parte do tempo sozinha, Nega nos conta que uma prima ficou

sabendo da sua situação e se organizou para levar roupas e absorventes para ela

no hospital. Bordar esperança, semear redes afetivas e de cuidados, como nos

conta Yera Moreno neste livro, me parece que é uma prática de mulheres. A

sobrevivência durante os séculos de patriarcado e racismo só foi possível por essa

rede de cuidados mútua tecida por nós mulheres.


A história da boneca Abayomi nos canta sobre a potência do cuidado

realizado pelas mulheres.Após sequestradas de África, as pessoas negras

cruzavam o Atlântico em navios negreiros.Crianças,mulheres e homens

amontoados como sacos de batatas, completamente despidos da sua humanidade.

As mulheres, para tornar aquela travessia mais humana, costuravam com pedaços

das suas saias bonecas para as crianças e contavam histórias sobre e com elas.

Abayomi significa resistência, sobrevivência e cuidado.


Neste livro, o relato de Andréia Alves demonstra bem o poder de

solidariedade entre as mulheres,e como esta é uma forma de resistência à

criminalização do aborto. Apesar de decidida por realizar o aborto, Adréia nos conta

da insalubridade do seu processo. O aborto com sonda é um método arcaico,

perigoso e nocivo à saúde, mas foi o método que ela pode pagar no momento dos

seus 22 anos. Além de todo o sofrimento de ter injetado creolina no seu útero, ela

ainda teve que enfrentar uma série de violências obstétricas no serviço de saúde. O

retrato dramático de Andréia só é atenuado quando sua mãe entra em cena

contribuindo para que ela tenha um desfecho de cuidado no seu percurso abortivo.

Tias, avós, primas, irmãs, mães, amigas. São elas que precisam recorrer ao

aborto nesse país. Todas elas expostas a dor, medo, sofrimento e humilhação pela

criminalização da prática. Suas vontades são desconsideradas, seu direito à vida

ignorado. Os homens que erguem as leis não engravidam, não cuidam, não passam

a noite ninando crianças. Esses homens não precisaram costurar bonecas para, na

travessia do Atlântico, as crianças não sucumbissem ao banzo. Morte materna,

desigualdades no mundo do trabalho, pobreza, responsabilidade com as crianças e

trabalho reprodutivo são algumas das questões que permeiam o contexto no qual as

mulheres exercem seus direitos sexuais e direitos reprodutivos.


Conhecer essas histórias, recuperar seus cenários, respeitar suas escolhas.

A legalização do aborto precisa acontecer em um contexto de justiça reprodutiva

para representar liberdade e alternativa para todas as mulheres. A luta pela

legalização do aborto está articulada a uma política eficaz e eficiente de

contraceptivos, segurança alimentar, saúde pública de qualidade, políticas de

enfrentamento ao racismo, à violência contra a mulher, à morte materna. Legalizar

ao aborto é uma questão de justiça reprodutiva e direitos humanos. É uma dívida

histórica que o Estado tem com as mulheres do Sul-Global.



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