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Lilia Momplé escreve para edição brasileira de "Ninguem matou Suhura"

A autora compartilha as motivações, as influências e as circunstâncias que a induziram a escrever e, mais especificamente, a escrever este livro de contos que é um importante testemunho da recente história de Moçambique e que propõe uma reflexão aguda do colonialismo português e seus desdobramentos sociais e históricos.


Solicita-me a Editora Funilaria que apresente a minha obra Ninguém matou Suhura aos leitores brasileiros.


Não pretendo esgotar todas as vertentes que a apresentação de uma obra literária implica, mas responder a algumas interrogações essenciais que ajudem a compreender melhor as motivações, as influências e as circunstâncias que me induziram a escrever e, mais especificamente, a escrever este livro.


Foi lá, na mítica ilha de Moçambique, onde eu nasci. Pequena e estreita, estende-se junto à luxuriante e sinuosa costa do Lumbo às Cabaceiras, emergindo num mar de coral que se espraia, em vários tons de verde e azul, até a linha do horizonte.


Desde criança que sou sensível à beleza desse mar calmo e profundo, pouco dado a tempestades, ao seu intenso e saudável odor, a iodo, às marés vazias em que recua, deixando a descoberto. Um mundo fascinante onde os saborosos caranguejos brancos correm nos sulcos de areia clara e as inúmeras poças de água abrigam bolotúrias, ouriços comestíveis, vistosos peixinhos de aquário. E ainda os húmidos bancos de amêijoa e ostra perlífera.


Também sou sensível, desde criança, à brisa que, mesmo nos dias mais quentes, percorre a Ilha como uma terna e fresca carícia, ao céu que, em certas épocas do ano se cobre de estrelas que parecem muito próximas e ao marulho do mar, música de fundo que me fazia adormecer em paz.

(arte: Òkun)


Sou ainda sensível ao subtil encanto das suas casas antigas e coloridas e até aos monumentos coloniais que, com a sua imponente presença secular, permanecem como testemunhos da nossa história sofrida que não devemos esquecer.


Por todos esses motivos, sem saber ainda o rumo que a minha vida iria tomar, fui ficando com a certeza de que um dia havia de escrever, não só sobre a Ilha, mas sobretudo o que me provoque emoções e sentimentos fortes que necessite de partilhar com os outros.


Um outro estímulo para escrever veio da minha avó Maiassa, mãe de minha mãe. Pertencia à digna e orgulhosa tribo hamaural e tinha o hábito de me adormecer contando histórias.


Possuía um vasto repertório de belos narramal, contos tradicionais macuas, onde desfilavam reis, rainhas, feiticeiras, guerreiros, magos e feiticeiros. Mas a participação destes era quase sempre esporádica, pois os principais protagonistas eram animais, desde os mais ferozes e possantes como o leão, o leopardo, o elefante, a cobra etc até aos mais frágeis onde se destacava o coelho.


Estes contos tinham sempre um fundo didático, pois, em última análise, pretendiam demonstrar que, muitas vezes, a inteligência e a ladinice conseguem vencer a força bruta e a maldade.

(arte: Òkun)


Eu deleitava-me a ouvi-las pois a minha avó Maiassa era uma contadora de histórias nata e muitas vezes pensava “Quem me dera que um dia possa contar histórias tão belas como estas”. E foi assim que a minha avó Maiassa, sem disso ter consciência, me induziu a escrever.


Finalmente, não posso deixar de mencionar o estímulo que os meus professores de português (todos de raça branca, como era óbvio nessa altura) me davam, cada vez que elogiavam as minhas redacções embora eu fosse, quase sempre, a única aluna não branca da turma. Tais elogios elevavam a minha auto estima e convenciam-me de que, embora fosse mulata, um dia o mundo da escrita não me seria vedado.


Entretanto, também desde criança, reparava que a maior parte dos negros andavam nas ruas rotos e descalços, que na escola não havia um único aluno negro, que nenhuma família negra vivia nas casas de alvenaria da chamada zona de cimento.


Os negros eram todos empurrados para a “Ponta da Ilha” onde viviam em frágeis palhotas, cobertas a macute, coladas umas às outras e aninhadas numa espécie de cratera. Vim a saber que tal cratera nada tinha de natural. Havia sido feita por mãos humanas para extrair pedra utilizada na construção das casas da zona de cimento.


Quando aos 10 anos completei o ensino primário, com enorme sacrifício dos meus pais, fui estudar para Lourenço Marques, actual Maputo, continuei a ver negros descalços e rotos nas ruas e confinados nos chamados “bairros indígenas” onde ciclicamente morriam de doenças hídricas e malária. Nos ônibus, os negros só podiam sentar-se no banco de trás mesmo que todos os outros bancos estivessem vazios.

(arte: Òkun)


Eu própria, por ser mulata, embora fosse uma das melhores alunas, fui proibida de participar no baile das finalistas do meu ano.


Por isso, não foram apenas a beleza e a magia da Ilha de Moçambique, as histórias

maravilhosas que a minha avó Maiassa me contava e os elogios dos meus professores de português que me estimularam a escrever e partilhar com os outros os meus sentimentos e emoções. Foi também a dor profunda que, durante anos, tive que suportar ao conviver diariamente com a discriminação e a injustiça.


Este meu primeiro livro Ninguém matou Suhura foi escrito só depois da Independência do meu país e é a realização de um sonho antigo ao mesmo tempo que me permitiu realizar uma verdadeira catarse, livrando-me de uma carga emocional que carreguei durante anos.




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