por Cristina Krippahl, publicado originalmente na Deutsche Welle.
Surgiu do nada o livro “Os Pretos de Pousaflores” da socióloga luso-angolana, Aida Gomes. Conquistou os leitores portugueses e mereceu críticas elogiosas à imprensa especializada. Mas quem é e porque escreve Aida Gomes?
O romance de estreia da autora até à data desconhecida foca um tema no mínimo pouco popular em Portugal: a experiência de racismo e marginalização de negros e mulatos, contada a partir da história de uma família mista obrigada a abandonar Angola após a descolonização. Em “Os Pretos de Pousaflores”, Aida Gomes propõe-se a desconstruir as narrativas tradicionais sobre o fenómeno dos “retornados”. Sobretudo o discurso oficial, que aponta os portugueses das ex-colónias africanas como motor de inovação e progresso da sociedade portuguesa.
Segundo a escritora, esta narrativa aplica-se apenas a um grupo muito restrito, pertencente à classe média de elevada formação. Uma elite bem sucedida em Portugal, decerto, mas também no Brasil, África do Sul ou Austrália, ou para onde quer que emigrasse, porque tinha condições para o ser. Outros, aos quais Aida Gomes é uma das primeiras a dar voz, tiveram uma experiência diferente: ”Há um grupo de retornados que nunca chegou a ser parte da narrativa oficial”. São as famílias negras ou mulatas, remetidas para as margens da sociedade, refugiadas nos bairros degradados dos centros urbanos, “sem nunca serem considerados portugueses, claro, por causa da cor da pele”.
A experiência do desenraizamento
Aida Gomes sentiu a diferença no tratamento na própria pele. Filha de uma africana, em 1975, apenas com oito anos, foi, sem mãe e com o pai branco, para uma pequena aldeia portuguesa. A literatura salvou-a da mentalidade provinciana e da estreiteza reinantes. Aos doze anos, os livros já lhe davam a certeza consoladora que o mundo era muito mais vasto do que a sua aldeia perdida no interior. E muito cedo surgiu a vontade de escrever. O que não significa que o romance seja uma autobiografia: “Eu quis explorar o que aconteceu entre Angola e Portugal e abordar assuntos que têm a ver com os vários momentos do colonialismo, como a descolonização, a guerra em Angola, o racismo, e também o desenraizamento”
São experiências pelas quais passam os protagonistas dos “Pretos de Pousaflores”: um pai branco, levando pela mão três filhos mulatos de três mães negras diferentes, invade o universo fechado e mesquinho de uma aldeia no interior de Portugal. O que se segue é narrado em capítulos alternados pelos diversos intervenientes. Uma característica deste romance surpreendentemente maduro para um primeiro livro é a credibilidade das diversas vozes que nos contam a luta dos protagonistas para sobreviver e manter a dignidade humana em circunstâncias pouco favoráveis.
A negação do racismo
São temas que, quase quarenta anos após os acontecimentos, continuam a ser atuais num país como Portugal onde, diz a autora, não obstante uma certa cultura de raiz africana ter conquistado o estatuto de chique, o racismo continua fortemente enraizado. Para a socióloga, trata-se também do resultado da grande desigualdade entre portugueses ricos e pobres, dominada por um machismo milenar. Aida Gomes narra uma série de experiência negativas chocantes neste contexto, como aquela vez em que “estava sentada do lado de fora de um centro comercial, quando passa um grupo de meninos bem e um cospe-me para cima”.
Nem sequer são estas experiências de um racismo extremo e primitivo que mais incomodam a autora. Repugna-lhe, isso sim, a complacência com a qual a parte bem-pensante da sociedade, que se considera civilizada e evoluída, aceita, ao negá-lo, o racismo no país. Aida Gomes nem sequer pensou em participar este incidente à polícia, sabendo que não seria levada a sério. Em países do norte da Europa, diz a autora, que emigrou para a Holanda aos 17 anos, o caso teria tido repercussões.
A indiferença do Ocidente
Nesta perspetiva, seria compreensível que o desenvolvimento recente das relações entre Portugal e Angola, com a clara inversão de forças, pelo menos económicas, desse uma certa satisfação à escritora angolana. Não é esse o caso. Para Aida Gomes, o que se passa em Angola, e o pouco que isso interessa ao Ocidente, apostado em tirar o máximo partido das riquezas angolana sem se preocupar com o fraco desenvolvimento da democracia e dos direitos humanos no país, não é motivo de regozijo: “É assim em muitos países africanos. As riquezas acabam por sustentar apenas o Ocidente e uma pequena elite nacional”.
Como funcionária das Nações Unidas, que passou vários anos em missões de construção da paz em países como Angola, Guiné-Bissau, e Libéria, onde está estacionada neste momento, Aida Gomes conhece de perto esta realidade. Não esconde, porém, uma certa desilusão com um trabalho que inicialmente aceitou com grande idealismo: “Lembro-me que quando comecei a trabalhar nas Nações Unidas havia a noção de que os direitos humanos deviam ser respeitados”. Foi na altura em que surgiram os chamados “Objetivos do Milénio”, expressão da convicção de que seria possível criar um mundo mais justo num espaço de tempo concreto: “Mas nos últimos dez anos mudou tudo. Os direitos humanos deixaram de interessar. Agora defende-se a necessidade de investimentos e de explorar os recursos económicos. E há cada vez menos atenção aos aspetos sociais”.
Talvez um tema para um próximo livro da autora de "Os Pretos de Pousaflores", já aguardado com grande expectativa pelos muitos leitores recém-conquistados.
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